quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Aposta de beijo

APOSTA DE BEIJO


Ela estava do lado de fora da sua casa,
Que ficava ao lado da escola.
Brincava com a turma da sua rua,
Logo após o término das aulas.
Cabelo desgrenhado, ainda de uniforme da escola, e pés no chão.
Este era o “luke” daquela espevitada menina: livre, leve, solta...
Havia um movimento pouco usual após a saída da escola.
Os alunos e as alunas iam saindo e ficavam por ali...
Distraída, nem notou aquele movimento diferente.
Vieram então soprar ao seu ouvido:
- Sabe o Marquinhos?
- Marquinhos?
- É, aquele da quarta série?
- Hum? 
- Pois é, ele tá vindo para te dar um beijo! 
- Arrrk! (levou a mão à boca).
- Apostou com a turma...
Ela ficou branca. Paralisada!
Olhou para esquina, e lá estava o tal do Marquinhos.
Cabelinho penteadinho, magrelo que só.
Olhando para ela com aquele olhar fuzilante, matador!
Não pensou duas vezes: disparou Caminho novo a cima!
O lugar mais perto que parou foi no cemitério.
Deu a volta pelos fundos, e saiu sorrateira no terreiro da casa do Seu Lázaro.
Ficou aguardando a meninada passar correndo.
Enquanto entravam pelo portão do cemitério (alguns corajosos),
Ela disparava Caminho novo abaixo.
Os que ficaram de fora, logo denunciaram a fuga, e saíram em disparada, atrás dela.
Ela foi muito mais rápida!
Entrou correndo pela porta da frente da casa da vizinha e saiu pela dos fundos no mesmo embalo.
Dona Berenice nem viu quem foi que passou por ali.
Chegou lá no terreiro, subiu no tanque de lavar roupas e pulou para o outro lado, já no terreiro da sua casa.
Entrou correndo dentro de casa e foi se esconder debaixo da cama. Seu esconderijo preferido.
Por lá ficou um bom tempo... tremendo (de medo? raiva? sei lá!).
Não havia quem a convencesse a sair dali.
Até hoje o Marquinhos não conseguiu dar aquele beijo.
Perdeu a aposta.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Ainda sobra espaço?

AINDA SOBRA ESPAÇO?


Aos poucos vamos
Nos afastando,
Nos perdendo,
Nos deixando...
Nos temos visto tão pouco
Ultimamente.
Não nos vimos hoje.
Nos veremos amanhã?

Com o tempo a gente nem percebe.
E se não percebe e não cuida,
De repente já não nos faz tanta falta.
Simplesmente porque,
Seguimos em frente,
Ocupando os espaços:
Novos amigos,
Novos amores,
Novas aventuras,
Novos atores.
Novas culturas,
Conhecimentos,
Novas experiências:
Alegrias,
Sofrimentos,
Desilusões.
Novas estórias,
Muitas escolhas,
E decisões.

Ao longo deste tempo
O que foi que fizemos de nós:
Crescemos?
Evoluímos?
Amadurecemos?

Quando nos encontrarmos
(Se nos reencontrarmos),
Num qualquer repente,
Seremos outros:
Diferentes!

E aí, quem sabe,
Ainda sobra espaço,
Em nós?

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Professor de piano


Professor de piano


Aos treze anos os seus pais lhe contrataram um professor de piano.
Aos catorze estava apaixonada. Um amor platônico.
Isso lhe dava motivação para estudar...
Antes de completar quinze, seus pais se mudaram de país.
Nunca mais ouvira falar do professor.
Aos quarenta e cinco anos, no auge da fama e muitos prêmios internacionais depois, foi convidada para um concerto no seu país natal.
Para sua surpresa, entre os músicos da orquestra, ela reconheceu o trompetista.
Após o ensaio se encontraram.
Falaram das suas vidas e decepções...
Ambos passaram a vida inteira buscando um ao outro: nos outros que conheceram.
Durante aqueles dias redescobriram o amor maduro, porém tardio.
Terminado o concerto ela voltou aos seus compromissos internacionais.
Ele ficou vivendo de esperança.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Prerrogativas

PRERROGATIVAS


Há mais frieza no último sorriso
Do condenado,
Que mais pujante desprezo.
Há mais gelo no olhar indiferente
Do corruptor,
Que na mais reles ofensa defecada.

Bocas imundas falam menos falsidades,
Que algumas cuidadosamente limpas.
Rostos de aparência angelicais
Não significam corações singelos.

Poderosos são capazes de muita podridão
Para se manterem encastelados no poder.
Possuem almas imundas e mãos criminosas,
Vestem roupas caras e colarinhos brancos.

Almas perturbadas e desajustadas
Não habitam, só, corpos atormentados e sujos.
Nem todas as mãos que matam
Estão sujas de sangue.

A corrupção não é privilégio de fracos,
É prerrogativa dos homens.

Dissimulados somos todos nós
Nas inocentes mentirinhas cotidianas:
Arrotamos boa educação e conduta,
Mas nos omitimos diante de poderosos.

Acreditamos que a melhor distribuição de renda
É sempre a divisão dos ganhos dos outros.
Caridade e filantropia: se faz com sobras;
Como não me sobra, não faço!

E esta nossa omissão diária faz mais vítimas
Que catástrofes e guerras.

Acreditamos em mandingas, feitiços,
Maus olhados e magias,
Mas duvidamos dos milagres.
Acreditamos que figas e amuletos nos dão sorte,
Mas não temos fé!

De todos os seres vivos, somos únicos, taridades.
Acreditamos nas nossas próprias verdades.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Acostumando

ACOSTUMANDO.


Aos poucos vamos nos acostumando...
Vamos vendo, vamos olhando,
Como se olhássemos sem ver,
Até vendo, mas sem perceber...
Mirando uma paisagem descolorida
Sem muito brilho, sem muita luz.
Como se não fosse a própria vida,
E carregássemos, dos outros, a cruz.
Pagando até um alto preço,
Para somente ter o direito,
De sobreviver...

Vamos vivendo no mesmo lugar,
Na mesma rua, no mesmo andar.
Lendo os mesmos jornais.
Ouvindo uma mesma voz falar,
Sempre as mesmas notícias,
Vindas das mesmas fontes,
Contaminadas de vida cotidiana,
Sempre no mesmo tom,
Na mesma sintonia,
Os mesmos canais de televisão:
Desastres, mortes, agonia,
Guerras, conflitos, apostasia,
Drogas, roubos, corrupção...

Impregnados de lixo, luxo e informação,
Vamos vivendo estórias alheias,
Vestindo grotescas fantasias,
Recitando textos sem emoção!
Somos atores, encenando na cochia,
Uma sinfonia longa e dolorida.
E nem somos os coadjuvantes,
Pois somos nós, protagonistas!
É sofrimento inocente.
Cordeiros: pacíficos e indulgentes.
São mostras fundas da miséria,
Instalada dentro da gente.
Revelando a nossa incapacidade,
De transmutar esta realidade,
Com nossas próprias mãos.

E seguimos em frente, calados,
Ano pós ano, dia pós dia,
Lascivamente acostumados...
Sabendo que não devia!