terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O golpe


O golpe

        Seu Josias tem mais de setenta anos.
        Ele trabalha nos Correios, no mínimo, há cinquenta anos, está aposentado tem uns vinte, mas não quer parar de trabalhar.
        Foi casado por cinco anos: tem uma filha.
        A família ele não vê faz muito tempo, mas paga a pensão.
        Foi abandonado.
        Da família de origem, desde jovem, não tem notícias.
        Moravam no Ceará.
        Vive uma solidão dolorida.
        Ficou cheio de manias; a pior delas desenvolveu faz tempo: coleciona dores e doenças.
        Com o plano de saúde dos Correios, faz pelo menos uma consulta por semana.
        É paciente profissional.
        Se não está sentindo nada, vai à clínica para medir a pressão.
        Há pouco mais de um ano descobriu uma doença para a qual ele diz não ter solução, pois o médico mesmo que lhe operou disse: “a medicina não tem resposta para isso”.
        Já procurou por outros dois médicos que não lhe deram nenhuma resposta plausível.
        Está apavorado.
        Entre hérnias e fístulas, médicos e enfermeiras, clínicas e hospitais, Seu Josias vai preenchendo o vazio da sua vida, monótona e rotineira:
        Almoça no refeitório dos Correios, e prepara um miojo à noite.
        Lava a própria roupa e diz que arruma a casa de vez em quando...
        Não tem empregada.
        Não tem carro, pois acha o trânsito muito louco.
        Bicicleta e moto, nem pensar, só anda a pé.
        Não assiste TV, pois os programas são inúteis ou imorais (- Já viu este tal de BBB?).
        No rádio, de vez em guando, ouve futebol: é do galo.
        Não lê porque não está mais enxergando direito (- Dá dor de cabeça!), mas não usa óculos.
        Não vai ao cinema porque é muito caro.
        Deixou de ir à igreja porque o padre fala demais.
        Raramente compra alguma coisa, prefere guardar o dinheiro (- Vá lá que acontece uma desgraça!)
        Não acredita nos bancos, prefere o colchão.
        Viagem, nem pensar!
        Amigos ele não tem, não encontra quem lhe tolere a cantilena de reclamações das dores e doenças.
        Seus colegas de trabalho correm dele, pois sua conversa é sempre a mesma.
        Quando encontra um ouvido disposto, conta toda a sua história e detalha a cirurgia, o erro médico, cada retorno, cada nova consulta que fez e arremata:
        - Estão todos mancomunados, um médico não revela o erro do outro médico, ficam fazendo corpo mole, quem sofre somos nós!
        Certo dia apareceu no seu trabalho, não sabe de onde, querendo lhe conhecer, uma tal de Francisnalva.
        Por uma semana ela o visitou sempre alegre e falante.
        Num final de semana o convidou para ir ao cinema, ele não foi.
        Um dia lhe pediu um abraço, ele no máximo lhe deu um aperto de mão.
        Num outro foi ousada e lhe pediu um beijo.
        Ele negou e disse que tinha perdido a prática.
        Nunca mais ela voltou a aparecer.
        Hoje ele revelou que está com saudades da Francisnalva.
        Tá fisgado!

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